Ecologista mexicano defende que origem da crise ambiental está na história do pensamento e no pressuposto de que o homem pode dominar a natureza e tê-la a seu serviço, em vez de viver em conformidade com ela.
Se a espécie humana se julga o ser supremo da Terra, como criou um modo de vida destrutivo ao planeta? Essa questão levou o sociólogo mexicano Enrique Leff, de 74 anos, a um mergulho na história da filosofia ocidental, em busca de respostas. O resultado está em seu último livro, O fogo da vida.
Doutor em Economia do Desenvolvimento pela Universidade de Paris, Leff é uma das principais vozes no debate sobre ecologia política. Para o mexicano, o pressuposto de que o homem pode dominar a natureza e tê-la a seu serviço é responsável pela crise ambiental que vive o planeta. A única saída, na visão de Leff, é reaprender a viver em conformidade com a vida da Terra, tal como sempre fizeram os povos originários.
"Devemos pensar nas condições de sustentabilidade a partir do imaginário dos povos da terra. Sentir, saber como intervir nesses processos dinâmicos do metabolismo da iosfera. Precisamos reaprender a viver de acordo com as condições da vida", conclama nesta entrevista à DW Brasil, realizada durante o Seminário Internacional de Ecologia Política - Justiça Socioambiental e Alimentar na Tríplice Fronteira.
DW: Como explicar que o pensamento seja responsável pela crise ambiental que vivemos hoje?
Enrique Leff: A filosofia não considerou o peso específico do pensamento. Ficaram pensando na transcendência do pensamento, e não no impacto que tem sobre a ordem da vida e a condição da terra. Se os economistas não acham que a economia é responsável pela crise ambiental, os filósofos tampouco pensaram em sua responsabilidade até agora. A origem do impacto do processo econômico sobre a desestruturação da natureza, da crise ambiental, é realmente um efeito metafísico. Tudo provém do modo de compreensão do mundo, das coisas, que vêm da constituição do pensamento metafísico, sua predileção quase obsessiva para meditar sobre o ser das coisas, sem pensar o impacto do pensamento sobre a ordem da vida. A crise ambiental é fundamentalmente o efeito de uma falha de compreensão da vida e da intervenção humana sobre a ordem da vida. Nós precisamos compreender este enorme enigma: como o homo sapiens, que se orgulha de ser o ser supremo da criação, gerou uma racionalidade contrária às condições da vida.
O que caracteriza essa forma de interagir com a vida?
O modo de racionalização do mundo está fundado e se converteu numa vontade de poder e domínio sobre a natureza. Esse ideal mal pretendido de controlar pelo conhecimento se converteu em um meio de intervenção sobre as condições da vida. Foi o que desencadeou a entropização do planeta, a apropriação destrutiva, por meio da medida, cálculo, conversão de todas as ordens ontológicas da vida. Isso constituiu a complexidade emergente da vida no planeta em um processo maior de entropização, degradação da matéria e da energia organizada em nossa terra.
Por sua vez, os modos tradicionais de compreensão da vida foram descartados. Se não conhecem perfeitamente a ordem da vida, eles se aproximam mais de sentir, perceber, experimentar, dar tempo à natureza para se recuperar. São modos mais prudentes de intervenção sem a vida, que não se baseiam na dominação e controle, mas em viver dentro das condições da vida, de sua imanência. É outra predisposição da mente e corpo humanos para viver bem nessas condições, um outro modo de compreender a vida.
As soluções sustentáveis apresentadas por novas tecnologias não são suficientes para reverter o quadro atual?
O conceito de desenvolvimento sustentável já foi bastante pervertido e cooptado pela racionalidade econômica, com as ideias da economia verde e mecanismos de desenvolvimento limpo - toda essa estratégia que pretende recompor o pensamento econômico deste mundo sem sair da racionalidade econômica. Em vez de pensar a desconstrução da economia que gera o aquecimento global, estão investindo em novas tecnologias para refletir os raios solares, a fim de evitar um aquecimento maior do planeta. Precisamos pensar a partir do que não é uma fantasia, a produtividade entrópica da atmosfera. É possível essa reconstituição da vida, dos modos de intervenção, de acordo com essas condições da vida.
Devemos pensar nas condições de sustentabilidade a partir do imaginário dos povos da terra. Sentir, saber como intervir nesses processos dinâmicos do metabolismo da biosfera. É um processo de reaprendizagem do que é responsabilidade da humanidade neste momento de transição histórica do planeta. Somos o motor maior das transformações da vida, e precisamos estar conscientes disso.
Os povos da terra não são estáticos, como pensavam alguns antropólogos, estão mostrando a grande sensibilidade, capacidade de reflexão e reconstituição dessas identidades para aprender a viver dentro das condições da vida. Isso significa abrir-se a intercâmbios de saber e ao mundo da ciência para ver as lições mais positivas que eles possam incorporar às suas práticas coletivas e processos produtivos. Aí, abre-se uma possibilidade histórica, que acaba sendo imperativa. Eles têm muito mais a ensinar a nós, acadêmicos, do que o contrário. Mas estão bem mais abertos à ciência do que nós ao conhecimento deles, para juntos abrirmos esses espaços de diálogos de saberes, visando a uma nova compreensão.
O senhor acredita na transição para outros modelos de interação com o planeta?
Devemos nos perguntar se a natureza oferece condições suficientes para pensar um mundo construído dentro de outras economias, outras racionalidades, de um aproveitamento das condições da vida. Falam na necessidade de se adaptar às mudanças climáticas, como se fossem um destino inevitável. Isso já fecha as possibilidades de pensar este outro mundo possível. Não se trata de construir sobre a fantasia, mas uma verdade que até agora esteve invisibilizada.
Vislumbro um mundo construído sobre a produtividade ecológica da natureza. É preciso retomar esse modo de compreensão da economia dos fisiocratas, anterior à construção clássica de Adam Smith e Karl Marx. Eles defendiam uma economia que se constitui sobre os princípios da potência emergencial da vida e pensavam em termos de produtividade das sementes. Essa visão foi relegada ao ostracismo do pensamento econômico como um absurdo, impossível, porque não era pensada nos termos da racionalidade tecnológica, científica, voltada ao progresso humano.
O físico austríaco Erwin Schrödinger foi o primeiro a falar na vida como entropia negativa, na termodinâmica. Isso recupera a compreensão de nosso mundo, que a biosfera está constituída por um processo de transformação de energia solar e produção de biomassa. Esse princípio, que foi e continua a ser esquecido pelos economistas, é o princípio da vida. Se ainda existimos neste mundo, é porque temos um planeta que gerou a vida a partir da energia solar, das condições de constituição molecular da vida e a complexidade da biosfera. Há 15 milhões de anos se constituíram os equilíbrios atmosféricos e ecológicos que continuam gerando a diversidade nesse planeta.
Um sistema econômico nesses moldes poderiam atender às necessidades da população mundial?
Em 1974, no primeiro congresso internacional de ecologia, foram realizados os primeiros cálculos da produtividade da natureza, com foco nos sistemas tropicais. Em termos termodinâmicos e de biomassa, o planeta não só é suficientemente produtivo, mas a própria natureza gera biomassa em porcentagem de crescimento natural de 8% a 10%. Não é pouca coisa, quando se pensa que os grandes países estão com dificuldades de crescer mais do que 5%, de forma insustentável.
Como a natureza gera sua maior potência nas faixas tropicais, as economias localizadas mais a norte ou a sul rejeitam essa ideia porque não conseguem acreditar. Até os esquimós conseguiram construir processos humanos civilizatórios para viver em condições de produtividade naturais. Isso não quer dizer que os homens devem viver só dessa produtividade. A isso se somam os processos de intervenção cultural para selecionar as espécies mais úteis, fazer cultivos sustentáveis, associações múltiplas. Tal como fazem as polivalentes culturas tradicionais amazônicas, que se adaptam aos períodos de cheia e seca.