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"Sociedade brasileira é viciada em gasto público"

Economista Marcos Mendes é organizador de livro sobre equívocos do passado sempre repetidos pelo país. Entre eles, considerar que não há limites à atuação do governo e não medir resultado de programas, diz em entrevista.



 

Crítico da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que autoriza o próximo governo a aplicar R$ 145 bilhões acima do teto de gastos, o economista e pesquisador do Insper Marcos Mendes afirma que o problema orçamentário do país é a falta de prioridade. O Brasil, segundo ele, possui "características institucionais, históricas e federativas que geram como resultado o aumento do gasto público".

Além das críticas à PEC da Transição e de apontar temores que o futuro governo Lula repita políticas que fracassaram, Mendes sustenta que o Brasil não avalia suas políticas públicas e não cria instrumentos para medir e estimular a boa aplicação de recursos públicos.

A disputa eleitoral polarizada no Brasil também gerou um "leilão eleitoral” e o resultado foi o aumento de gastos, segundo disse Mendes, em entrevista à DW.

Em 2022, o economista organizou o livro Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil, em que convidou 33 autores para discutirem equívocos cometidos no passado e que são constantemente repetidos, impedindo o crescimento do país, a redução da pobreza e da desigualdade. No próximo ano, ele vai publicar um livro contando o contrário: experiências que deram certo.

O pesquisador do Insper reconhece que a administração de Jair Bolsonaro também aumentou tremendamente o gasto público, sobretudo para favorecer os congressistas (com emendas e fundo eleitoral e partidário), militares e um aumento de transferência de renda, com o Auxílio Brasil, "mal desenhado". "O dinheiro está sendo mal direcionado. Só um redesenho do programa economizaria cerca de R$ 20 bilhões", calcula.

A seguir os principais trechos da entrevista:

DW: Você afirma que o Brasil tem uma tendência de repetir erros na implementação de políticas públicas que deram errado. Uma das suas reflexões é sobre a ilusão dos governos brasileiros de que o aumento de gastos públicos provoca crescimento. E o novo governo começa com esse debate da PEC da Transição. Há risco de o Brasil entrar numa nova espiral complicada sem dignóstico preciso dos problemas?

Marcos Mendes: Tem risco sim. Por que o Orçamento de 2023 se tornou irrealista? Porque foram feitas escolhas no passado recente que tornaram esse Orçamento irrealista. Foram feitas decisões de aumento de gastos, independente de análise, mérito ou não de cada programa. o Auxílio Brasil subiu de R$ 32 bilhões para R$ 175 bilhões em 2023; a complementação do Fundeb (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica) de R$ 15 bilhões para R$ 30 bilhões em 2022, por conta de uma emenda constitucional aprovada; de uma hora para outra, as emendas parlamentares se tornaram obrigatórias, não pode mais contingenciar, e dobraram de tamanho – são mais R$ 40 bilhões que não estão mais disponíveis para outros programas. E a sociedade não aceita cortar nenhum programa antigo, ineficiente.

Estamos vivendo ao longo dos anos uma situação em que a despesa aumenta muito em determinados programas e por isso está faltando do outro lado. É a noção de custo e oportunidade. Se eu escolho gastar com A, não terei dinheiro para gastar com B. E de repente você olha e fala assim: falta dinheiro para as universidades públicas, para o Farmácia Popular, para bolsas de estudos, para a rede hospitalar... Sim. Porque se escolheu gastar em outras coisas.

E aí a decisão é: vamos aumentar mais o gasto para atender tudo, se recusando a fazer escolhas. Tudo é prioritário. Quando a gente faz isso, no fundo estamos fazendo uma escolha: mais inflação, mais dívida pública, mais despesa com juros, menos crescimento e menor capacidade de diminuir pobreza, porque os programas não estão focalizados. É este o problema que estamos vivendo.

Então você é contra a PEC? Não seria a decisão adequada?

Com certeza. Para começar, o aumento da despesa com o adicional para R$ 600 do Bolsa Família [que mudou para Auxílio Brasil] e mais aquele adicional de R$ 150 por criança, acrescenta R$ 70 bilhões. A PEC aumenta a despesa em quase R$ 200 bi. Então não é aumentar a despesa para atender aos mais pobres. Segundo, não é bem verdade de que se precisa de R$ 70 bi para atender os mais pobres, porque o programa é muito mal desenhado.

Pessoas fazem fila para receber benefício do Auxílio Brasil no Rio de Janeiro, diante de parede azul.
Fila para receber Auxílio Brasil no Rio de Janeiro: "Programa foi mal desenhado", diz Marcos MendesFoto: Silvia Izquierdo/AP Photo/picture alliance

Só redesenhado o programa se economizaria de R$ 15 bilhões a R$ 20 bilhões. O Auxílio Brasil foi muito mal desenhado e o dinheiro está sendo mal direcionado, porque as famílias estão se dividindo para receber dois, três auxílios. E isso tudo numa situação em que o governo já está em déficit crescente. Ou seja, está se sinalizando um aumento de déficit público que é insustentável, que vai fazer a dívida pública crescer, que vai aumentar juros, que vai diminuir o crescimento econômico. É um verdadeiro tiro no pé.

O Brasil tem reincidência de erros de diagnóstico. Ainda é incipiente no país fazer política pública com base em evidências, ou houve avanços?

Acho que continua, e ganhou essa visão nas eleições, a aposta de que quem resolve os problemas da sociedade é o governo, de que para todo problema da sociedade tem uma política pública, e não há limites para a ação no governo, seja no sentido de aumentar a regulação da economia, seja para direcionar créditos ou limitar importações.

Essas são políticas públicas que já se mostraram fracassadas no passado, que não são capazes de dinamizar a economia, mas continua a existir essa crença muito grande de que o governo é capaz de puxar a economia, seja impondo limitações ao investimento privado, seja tributando mais a sociedade e gastando mais. Isso não funcionou no passado e essa fórmula parece que será repetida agora.

Mas existem esferas nacionais, estaduais e municipais que têm apostado nas evidências, ainda que exemplos incipientes.

Sim, a despeito da histórica tendência dos estados brasileiros de arrebentar as suas contas e passar o passivo ao governo federal, a gente viu num passado recente boas administrações fiscais nos estados, governadores investindo em sistemas de controle, de análises de políticas públicas. A gente vê melhorias concretas na gestão fiscal de estados como Goiás, Alagoas, Espírito Santo, Amazonas... Há políticas públicas de educação, como é o caso do ensino básico no Ceará, do ensino médio público em Pernambuco.

Mas isso é muito pouco, porque essas experiências não estão sendo replicadas e copiadas no país. Quando você pega educação, por exemplo, claramente o Brasil já gasta muito.

Dados do Banco Mundial mostram que 89% dos países do mundo gastam em proporção do PIB menos do que o Brasil gasta em educação. Dados da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) mostram que em termos de esforço orçamentário, ou seja, o percentual do gasto em educação em relação ao gasto total no Brasil só é menor do que em dois ou três países da OCDE.

O Brasil está muito acima da média dos países latino-americanos e de países da OCDE em termos de esforço orçamentário e, no entanto, a educação não melhora. E as propostas quais são, sempre? Mais gastos em educação. Foi esse o diagnóstico que praticamente dobrou as transferências para o Fundeb nos últimos dois anos. Então você tem sempre o caminho mais fácil, que é gastar mais, e o caminho politicamente mais interessante. Ninguém está pensando, efetivamente, na eficácia da política lá na ponta.

Pegando o exemplo da educação, por que aplicamos tão mal os recursos e não avaliamos as políticas públicas?

A gente não avalia e a gente não cria instrumentos para estimular a boa aplicação. Por exemplo: no debate do Fundeb, houve total ojeriza pelas pessoas que estavam comandando o debate a incluir, entre os critérios de participação e distribuição dos recursos, a melhoria da qualidade do ensino da rede básica. Então distribui por número de alunos, mas na hora em que se discutiu de dar mais dinheiro para municípios que apresentarem melhorias nas notas dos alunos nos exames de avaliação – efetivamente o que mede o resultado –, todo mundo foi contra.

Tem uma ideia no Brasil de que premiar o bom resultado é algo negativo, que a gente tem que dar o dinheiro e não esperar o resultado. Existe essa cultura fortemente arraigada.

As repetições de erros em políticas públicas, como você e os autores apontam no livro, também estão ligadas a interesses eleitorais e políticos. O atual processo eleitoral também gerou aumento de gastos. Quais as consequências?

Tivemos um processo de polarização política que gerou um leilão de quem dá mais para se eleger, e o resultado disso é essa PEC [da transição]. O presidente eleito se sentiu na necessidade de cumprir as suas promessas do leilão eleitoral no primeiro ano de governo. E fará isso aumentando os gastos.

Costumo dizer que a sociedade brasileira acabou se tornando viciada em gasto público. Temos algumas características institucionais, históricas e federativas que geram como resultado o aumento do gasto público. Temos um sistema federativo que é desequilibrado no sentido que os estados têm incentivos a gastar mais porque sabem que, ao final, vão empurrar a conta para o governo federal, seja por meio de processos no STF, seja propondo ao Congresso um perdão de dívidas ou aumento de transferências. Então, quem sabe que, lá na frente, vai ser resgatado, não tem preocupação.

A mesma coisa acontece com o nosso sistema político eleitoral. O sistema de eleições proporcionais, usando como base e como distrito o estado como um todo gera um incentivo para que corporações acabem elegendo representantes de seus interesses próprios.

Exemplo: se eu tenho um distrito eleitoral tão grande como São Paulo, um candidato que represente os bombeiros vai conseguir votos de bombeiros de todo o estado, se eleger, e lá na Câmara vai olhar para os interesses apenas dos bombeiros, e não da sociedade como um todo. Se houvesse eleição distrital, não haveria bombeiros suficientes para eleger esse candidato dos bombeiros.

Acabamos elegendo para a Câmara uma bancada representativa de interesses corporativos que olham primeiro seus próprios interesses e só em segunda instância o interesse difuso e coletivo. Querem levar benefícios a seu grupo e não se preocupam com o custo jogado ao resto da população.

À esquerda, o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin cumprimenta o presidente eleito, Lula, durante cerimônia de diplomação no TSE.
Vencedores das eleições, Lula e Alckmin (e.) buscam ampliar gastos públicos para, entre outros, garantir pagamento de benefício social do Bolsa Família de R$ 600Foto: Evaristo Sa/AFP

Nosso sistema Judiciário, de um dia para o outro, pode gerar tremendos esqueletos para a União. Temos uma instabilidade muito grande. Ou seja, há uma série de características na nossa sociedade que levam a uma dispersão de interesses e a uma pressão por aumento de gastos, e não estamos conseguindo lidar com isso. Uma forma de lidar foi o teto de gastos. Mas a reação da sociedade foi demolir isso.

Você mencionou o leilão eleitoral e as promessas do futuro governo, de Luiz Inácio Lula da Silva. Mas o governo atual, de Jair Bolsonaro, também criou inúmeras novas despesas e ignorou o teto de gastos.

Também. Não é uma questão ideológica. Estou descrevendo características da nossa sociedade. O cara, para sobreviver politicamente, acaba tendo que entrar neste jogo. Apesar disso, têm diferenças na margem. Claramente um governo do PT acredita mais em instrumentos estatais para induzir o crescimento de longo prazo do que um governo de direita. E aí não é só gasto público: são bancos públicos, crédito subsidiado, todos esses pontos que mencionei.

Mas o governo atual, apesar do discurso de liberal, não descumpriu essa cartilha fiscal da direita?

Pois é, veja que contradição. Ao mesmo tempo em que o governo atual descumpriu o teto de gastos e aumentou despesas, está sendo acusado de deixar orçamento no osso. Não bate.

O que aconteceu? Na verdade, o aumento do teto de gastos não foi suficiente para dar conta de toda a voracidade de alguns segmentos que conseguiram capturar o orçamento, como emendas parlamentares, o grande aumento de determinados programas públicos.

O problema que o novo governo está enfrentando não é o suposto excessivo "fiscalismo" do governo que está saindo que comprimiu a despesa. Não. Na verdade, o que aconteceu é que a despesa cresceu muito mais do que seria factível e do que era permitido pelo teto de gastos. Mesmo com furos no teto de gastos, ainda assim faltou dinheiro em muitas áreas, porque aumentou muito as despesas em outras.

Algumas corporações perderam. Os servidores públicos perderam, porque não tiveram aumento. Mas os parlamentares ganharam porque aumentaram tremendamente as emendas, aumentaram os fundos de financiamento de partido, aumentaram os fundos de financiamento de campanha eleitoral. Os militares ganharam porque aumentaram seus salários. Aumentou-se tremendamente a transferência de renda. Houve aumento tremendo do Fundeb. Mas outros perderam: as verbas de universidades públicas, de bolsas de estudo, o programa Farmácia Popular etc.

Você mencionou problemas no desenho do Auxílio Brasil, e a revisão disso poderia gerar uma economia de até R$ 20 bilhões. Por que os políticos têm tanta resistência em avaliar políticas públicas?

Não existe programa mais estudado que o Bolsa Família. Inúmeros estudos mostram que o seu desenho original foi bastante eficiente ao chegar aos mais pobres, ao exigir condicionalidades, ao não ser vinculado. Tinha um custo fiscal baixo, que foi mudando com o tempo.

Essa mudança do Auxílio Brasil basicamente foi um instrumento eleitoral. É um apelo eleitoral grande e fácil dizer que cada família não ia receber menos de R$ 600. Foi dada prioridade para esse rótulo, independente da qualidade do programa. Porque na hora em que eu dou R$ 600 por família, ficou claro e todo mundo já viu isso, que darei R$ 600 para uma pessoa sozinha ou para uma mãe com 10 filhos. Não é lógico e isso estimula as famílias a se dividirem para receberem mais benefícios.

Então em primeiro lugar você tem um problema de rótulo eleitoral. Em segundo lugar, você tem o problema de resistência dos políticos em cortar programas que não são mais eficazes, mas têm clientela. O abono salarial, por exemplo: já foi comprovado que ele não reduz desigualdade e não reduz a pobreza, e custa caro. Mas os políticos não conseguem acabar. É a famosa frase de efeito do Bolsonaro: não vou tirar do pobre para dar para o miserável.

Você está pessimista com o futuro governo ou enxerga algum caminho no Brasil para revertermos os sucessivos erros do passado?

O governo ainda não começou. Mas as sinalizações não são boas e apontam para repetir vários erros que mostramos no livro. Exemplo: a situação fiscal; acreditar em políticas de crédito direcionado para estimular investimento; nada se fala sobre a abertura de economia, só de protecionismo.

Estão recriando o Ministério da Indústria e estruturas que produzem claramente protecionismo e políticas de subsídios em setores da economia. Estão falando em alterar a política de preços de combustíveis para tabelar; mais uma vez estão falando em usar a Petrobras como instrumento de política pública, o que quase quebrou a empresa lá atrás.

Várias destas politicas estão na iminência de serem repetidas ou aprofundadas. Por outro lado, por conta do jogo político, a gente vê algumas resistências: o debate público, a imprensa, o mercado. Falaram em revogar a Lei das Estatais e a bolsa desabou.

O DNA do PT é de maior intervenção, de achar que é o governo que deve comandar economia, que não tem problema ter déficit, que juro alto é especulação de mercado e não consequência do déficit público. Eles vão testar esses limites todo o tempo. E quando tiver resistência da sociedade, vão recuar. Será questão de ver até que ponto o embate político, o debate público e as restrições de mercado vão limitar o apetite do governo para repetir políticas que deram errado.

Fonte : DW

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